Um relato sobre a Biblioteca Kaos, a família Chaves Barcellos Wallig e a gentrificação de Porto Alegre.
Recentemente, a Biblioteca Anárquica Kaos ocupou uma casa abandonada há décadas no Centro Histórico de Porto Alegre. O imóvel, assim como um conjunto de imóveis que o cercam, pertence a uma das famílias mais ricas e tradicionais da capital os Chaves Barcellos / Wallig¹. Embora as construções sejam tombadas, seus proprietários planejam demolí-la para ali fazerem novos empreendimentos. Isso explica o abandono dos imóveis, pois como é proibido demolí-los, seus donos simplesmente os abandonam até que caiam pela ação do tempo.
O pai, João Wallig Filho, pretende construir ali um edifício garagem, enquanto seu filho, o arquiteto João Felipe Chaves Barcelos Wallig quer fazer um complexo de contâineres, com restaurantes vegetarianos, feira orgânica e outras coisas destinadas ao público jovem. Nenhum dos projetos pretende preservar as construções históricas.
Motores da Gentrificação
Os Chaves Barcellos Wallig possuem um papel ativo na gentrificação em Porto Alegre: são os responsáveis pelo Vila Flores, projeto que transformou um conjunto arquitetônico no bairro Floresta, largado pelos seus proprietários à décadas, em um pólo da assim chamada “economia criativa”. Em um texto de sua própria autoria no site Arq.Futuro, João Felipe fala sobre como “os moradores decidiram sair voluntariamente”. A história não foi bem assim segundo seu próprio pai, João Wallig.
Quando coletivo Cidade da Bicicleta perdeu seu espaço no Menino Deus e João ofereceu para ele um espaço no Vila Flores, ele lhes disse que sim, alguns moradores saíram voluntariamente, mas também relatou que no final teve que conseguir uma interdição do prédio, para forçar a saída de pessoas que se recusavam a abandonar o local onde viviam. Remover os moradores originais de um prédio, para substituí-los por jovens artistas, ateliers e outros profissionais “criativos” com o intuito de “revitalizar” uma região é claramente um processo de gentrificação, por mais que os Wallig já tenham um discurso pronto para se defender destas acusações.
Um dos próximos alvo deles são essas construções no Centro Histórico.
A Biblioteca Kaos
A Biblioteca Kaos é uma biblioteca anarquista que antes ocupava uma casa na Rua Alberto Torres, no bairro Cidade Baixa, mas que foi desalojada em 2016. Ela possui um catálogo de publicações para consulta e empréstimo, mas também edita suas próprias publicações, organiza e promove eventos, como debates, e inclusive foi sede para a 6ª Feira do Livro Anarquista de Porto Alegre.
Em seu site foi publicada uma nota sobre a nova sede e os confrontos com os Chaves Barcellos Wallig:
O domingo 12 de março entramos na casa da Rua Coronel João Manoel 641, antes o morro da formiga. Casa que estava abandonada faz três anos, no meio do centro histórico de Porto Alegre, e que é parte das heranças de duas das famílias mais burguesas, donos da cidade faz séculos: Chaves Barcellos e Wallig.
Temos a absoluta certeza de que estamos incomodando os poderosos que já apareceram para nos ameaçar e muito risivelmente para nos convidar a ser parte dos seus projetos de capitalismo alternativo. Nossa resposta é uma só: somos ocupas, anarquistas, e com a burguesia não temos conversa nenhuma.
Para nossa surpresa e alegria, a vizinhança apoia totalmente a ocupação porque vieram que poucas pessoas arrumaram um espaço que faz anos estava sem uso. A interação com eles foi uma clara atitude de solidariedade e iniciativa não só nas palavras mas sobretudo na ação, participando pouco a pouco da limpeza do lugar e apoiando com sua presença em algumas das visitas dos donos.
Depois das ameaças dos Burgueses de nos jogar pra fora com seus capangas e pitbulls, as galera das outras okupas da cidade chegaram para nos fazer sentir sua solidariedade e ajuda.
Neste momento ainda estamos na briga pelo espaço mas nossa decisão desde o início é permanecer sem negociação, nem jurídica nem verbal com os proprietários. A ocupação é uma pratica subversiva que não pode ser engolida pelas normas de propriedade imobiliária, é a resposta efetivas à acumulação absurda da terra em mão de uns poucos privilegiados. Nossa determinação diante disto é clara: casa abandonada, casa ocupada.
Desde um novo espaço, aqui seguimos onde sempre estivemos: na procura da liberdade e contra toda autoridade!
Biblioteca Anárquica Kaos.
Daqui pra frente
Como a própria nota da Kaos relatou, uma das primeiras tentativas de “negociação” dos Wallig foi tentar cooptar a biblioteca, prometendo-lhe um espaço dentro de seu futuro empreendimento. Quando sua proposta não foi aceita, partiram para ameaças, que foram desde voltar lá com cães bravos para arrancá-los à força ou conseguir uma condenação da estrutura do prédio junto à Defesa Civil para uma desocupação forçada. É a mesma estratégia de gentrificação já usada no complexo Vila Flores. Se puderem convidar pessoas jovens e descoladas para ocuparem inicialmente o novo empreendimento, garantindo-lhe uma imagem de espaço diverso e plural para atrair o público jovem e assim “revitalizar” o espaço, ou seja, aumentar o valor de seu empreendimento, ótimo, senão eles farão com que as pessoas sejam removidas de lá à força.
Aparentemente, os Wallig ainda não deram entrada num processo judicial de reintegração de posse. Talvez não o tenham feito por receio de que, com isso, venham à tona seus planos ilegais de demolir prédios históricos para criação de novos empreendimentos.
Se a ideia fosse mesmo “revitalizar” a região, ou “dar um presente” à cidade, por quê estão deixando os prédios desocupados, caindo, há tanto tempo? Por que não, por exemplo, transformá-los em moradias populares? Ou doá-los à cidade para a criação de albergues para a população de rua? Com certeza os Chaves Barcellos Wallig não deixariam de ser ricos com isso.
Eles querem usar nossos sonhos para encher ainda mais os seus bolsos, já abarrotados. Não deixaremos!
Toda solidariedade à Biblioteca Anárquica Kaos! Abaixo a gentrificação!
- Seu antepassado, João Wallig, foi um dos fundadores da Taurus, maior fábrica de armas do Brasil. Do outro lado da família estão os Chaves Barcellos já eram capitalistas pelos menos desde o início do século 20 – já foram proprietários de lanifícios, moinhos, hotéis e fazendas em Guaíba, Alegrete e Uruguaiana.
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